Existem pessoas que, por razões muitas vezes
incompreensíveis, são condenadas à morte e executadas friamente e, por espantoso
que seja, PERMANECEM VIVAS! Falo dos velhos abandonados, física, psicológica,
financeira e socialmente à sua própria sorte. Eu mesmo conheci e tive amplo e
profícuo contato com esses mortos-vivos. Gente que gozava de respeito e
admiração em seu meio que, às vezes por um deslize, são incineradas no altar da
vida. Amigos, famílias, meios pelos quais se movia, de repente, se escondem e
até pessoas que os prestigiavam ou ainda precisavam deles, colocavam-nos em um
limbo de absoluto silêncio e abandono. Como Descartes, “Penso, logo ele não
existe”! Cruzaram em minha vida velhos famosos nessa condição e Deus me
concedeu a supina graça de amá-los, respeitá-los e dar-lhes a coisa mais
importante que de mim pediam: um pouco de atenção. Apesar de não ser usual nos
dias de hoje, aprendi a me interessar pelo que me ensinavam. Suas histórias de
vida. Minha bisavó Cunhã, morou conosco até um ano antes de morrer, com 94 anos
quando escolheu ir para o Pão de Santo Antônio, vivendo com suas velhas amigas,
todas, como ela perto de cem: Lulú, Donana, Da. Sofia... Mas tive tempo útil
para, entre seis e dez anos, ouvir suas histórias VIVIDAS sobre o Batalhão de
Voluntários de Itapipoca marchando na principal avenida da cidade. A caminho da
Guerra do PARAGUAI. Sua admiração pelo “maior governante da História do Brasil”,
sim, apenas D. Pedro II a quem viu em Fortaleza descendo da Catraia Imperial e
andando pela avenida principal (hoje, do Imperador) a metros de distância de
seu êxtase, junto com Da. Tereza Cristina (Terezina), Princesa Izabel e seu
marido, o Conde D’Eu. Quer mais ou já tá chorando, como eu? Seu genro, meu
amado Cacá, um dos mais sensíveis homens que conheci. Também morava em casa,
até os 81, quando mudamos pra Brasília e ele ficou com Tio Celeste e Tia Lili
morrendo, hoje sei que de banzo, aos 84. Falava francês e latim vulgar.
Escrevia em Latim clássico. Um poço de sabedoria no qual eu bebia gulosamente
mesmo nos dias de sábado à noite quando todos meus amigos estavam na esbórnia.
Meu tio-avô Belarmino, gostava de falar e contar histórias com detalhes. Puxei
a ele o meu memorialismo. Ele dava datas, horas e referências e eu babava em
sua volta. Um místico, espírita, maçom do mais alto grau, chegando a Sereníssimo
de todas as Grandes Lojas do Pará, umbandista e, por último, andou visitando
igrejas evangélicas por instância de meu tio Abreu, português como ele, um
maravilhoso contador de causos da Serra da Estrela. Meu Deus, que saudade da
sabedoria deles! Meu tio Sérgio, velhinho, cabecinha branca. Visita obrigatória
em seu asilo na Penha, quando ia ao Rio. Me aproximava fazendo a saudação
comunista, punho direito fechado e braço levantado e ele, trêmulo, respondia
com lágrimas de emoção. Genioso, matou quatro ao longo da vida e jogou dez
Guardas Civis de Belém que tentaram prendê-lo, na Baia do Guajará. Comigo era
um doce. Que sorte eu dei na vida! Tinha dez anos e já ia sozinho a Bento
Ribeiro, sábado cedo e voltava domingo à tarde para Copa. Ia ficar o fim de
semana com meu tio Jerônimo (Mundico), sua mulher Lídia (tia Lili) e sua
cunhada Felicidade (tia Feli). Pegava o 12, ia até a Central do Brasil e o
resto ficava por conta das histórias da Revolução de 32 na Serra da Mantiqueira
e nosso TV Rio Ringue, das 10 a uma hora, que tia Lucy não me deixava ver, mas
eles sim. Faziam para eu comer o que lhes pedia e deixavam eu andar no quintal
montado no jabuti. Foram largados em vida por quase todos. Eu era um dos poucos
que me babava com suas histórias. É! Esses meus velhos inesquecíveis; como
sinto a falta deles. Uma falta que pouca gente sentia mesmo quando ainda eram
vivos, mortos-vivos, como se habitassem cemitérios abandonados onde nomes e
datas foram apagados das lápides. Simples assim! Perdão mas não deu pra
escrever menos!
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