Ah esses navegadores portugueses!
Quando eu ainda estudava o antigo Ginasial, no Colégio Marista de Belém (1959),
um colega de sala viajou a Portugal nas férias, para conhecer a família de seu
pai. É fato de que quase todos os paraenses descendem de portugueses, índios ou
africanos e dessa mistura grossa. Na volta, a primeira coisa que fez foi reunir
os colegas mais chegados, eu junto, para dizer de seu espanto sobre o que ele
classificou como uma comprovação da burrice portuguesa, representada numa
inscrição numa lápide sobre uma pedra, no Cabo da Roca, em Sintra, ponto mais
ocidental da Europa e que diz, parafraseando o Canto III, dos Lusíadas, de Luiz
de Camões: Aqui...onde a terra se acaba e
o mar começa! Todos gargalharam em minha volta, alegando um pleonasmo, uma
repetição do óbvio, uma legítima estupidez portuguesa. Confesso que não ri.
Tinha dois avós, vários tios e primos portugueses e me incomodava esse desrespeito.
Apesar de meus onze anos logo fui pesquisar o que significava aquilo e não
demorei a descobrir. Tento resgatar essa injustiça de minha adolescência,
perpetrada por jovens descendentes de portugueses e justamente contra a maior
grandeza da santa terrinha: a bravura do seu povo! Na verdade tudo começa no
Egito, 3.000 anos antes de Cristo, com a navegação em barcas de junco (o
papiro) pelo Mares Mediterrâneo e Vermelho, sob a influência do Faraó Snofru.
Mas é com os Fenícios, por volta de 1.500 a.C., povos essencialmente mercantis
da costa norte da África, lá por onde hoje fica o Líbano, Norte de Israel e
Síria, que galés birremes parecem ter partido para além dessas fronteiras de
água, chegando até as costas do Brasil (Rio de Janeiro e Sete Cidades , no
Piauí). Estava descerrado o primeiro mistério sobre a Atlântida que não deu
vestígios de existência nessa primeira viagem. Os nórdicos (vikings), em suas
naus extremamente velozes e construídas para navegar, com a mesma eficiência,
em águas profundas ou rasas, as drakar (dragões)
e snakar (serpentes), estabeleceram,
já no século X, bases nas Ilhas Britânica, Groenlândia, Islândia e América do
Norte. Só para se ter uma ideia da genialidade desses povos do mar, a quilhas
de seus navios era retrátil, coisa muito difícil de entender como é possível isso,
há tantos séculos atrás. Maravilhando-me com esses feitos, dei com os costados
na genialidade da Ciência Náutica Portuguesa, que se desenvolve a partir do
Século XII, através de invenções e adaptações formidáveis. A invenção das
caravelas de um, dois ou três mastros, chegando a deslocar DUZENTAS TONELADAS,
com uso da vela latina triangular, permite aos portugueses a façanha de “navegar
à bolina”, ou seja, avançar o barco em ventos desfavoráveis, ziguezagueando,
praticamente, contra o vento. A “idiotice” dos portugueses era tamanha, que
geraram o desenvolvimento de instrumentos de navegação já conhecidos,
notadamente pelos povos semitas, como os astrolábios e quadrantes aos quais se
somaram a bússola chinesa e os sextantes. Posteriormente, a criação das Naus
patrícias, trouxe à baila navios de 120 bocas de canhão e até 2.000 T de
deslocamento. E estamos falando da passagem dos séculos XIV para o XV. Antes, a
“burrice” portuguesa já criara os Pinhais de Leiria, plantação de pinheiros em
1.741 km2, feita por D. Afonso II ou D. Sancho II (e não D. Dinis,
como se imaginava) no século XII, para proteger os terrenos marítimos da
degradação, gênese da portentosa indústria naval portuguesa, não só pela
madeira abundante como pela pez (alcatrão vegetal retirado dos pinheiros e que
eram usados na impermeabilização dos navios). Além disso, o Infante D.
Henrique, no século XV, rodeou-se de marujos experimentados e cientistas, criando um grande estaleiro, com enorme galpão,
que ficou imprecisamente conhecido como Escola de Sagres, na Vila do Infante, e
que, na verdade, se tratava de um local físico onde se discutiam assuntos como
novos métodos de navegação, desenhos de cartas náuticas e adaptação de navios
às condições de navegação extremamente adversas para a tecnologia existente.
Foi lá que nossos corajosos ancestrais modernizaram o Mapa Mundi do Almirante
Turco Piri Reis e assentaram as bases para o início do ciclo de navegações
planetárias e grandes descobertas. Tente imaginar, mesmo de relance o que seja
navegar meses entre calmarias e tempestades que chegavam a durar duas semanas,
ora com mansidão ora com vagas de vinte ou trinta metros de altura, sem gelo,
GPS ou eletricidade, carregando os víveres que pudessem ser conservados no sal,
pescando diariamente para sobreviver, em pequenas cascas de noz balançando sob
a intempérie, água escasseando, escorbuto grassando entre a tripulação. E isso
seria até muito fácil não fosse o temor do desconhecido. Quantas vezes você já
enfrentou um caminho físico que nunca trilhou antes? Teria coragem de enfrenta-lo
mesmo sabendo que ele ia dar em um local
que nunca ninguém antes foi? Ou pior: teria coragem de enfrentar a CERTEZA de que
provavelmente você morreria antes? Pois saiba que o conhecimento humano
ajuntado até aquela época asseverava que você iria atingir um Mar chamado de
Tenebroso, onde sempre haveria noite e o sol nunca brilharia; em outros locais
habitariam serpentes e monstros gigantescos prontos a engolir navios inteiros;
na linha do equador o calor era tão grande que nenhum ser humano havia
suportado sem entrar em combustão espontânea????? Que tipo de liderança era
aquela que os Almirantes portugueses possuíam, a ponto de convencer seres
humanos, duros, analfabetos, ignorantes e temendo cada dia da jornada, a
prosseguir nela? Que promessas eles faziam a esses rudes marinheiros, muitos
separador de raparigas e filhos pequenos, os quais só uma certeza tinham: a de
que o mundo era um disco e o mar terminaria em uma imensa cachoeira que tragava
a todos. Mas eles seguiam mar adentro tocados por um sentimento que já não
existe: a coragem, a bravura de nosso irmãos portugueses, aqueles ignorantes e
idiotas aos quais devemos o conhecimento do mundo como hoje a realidade o
concebe. Muitas vezes me achego à praia, quando pude e posso, geralmente nos
fins de tarde e solitário, para sentir passando perto de mim as figuras de Gil
Eannes (primeiro a navegar além do Bojador, em 1434), Bartolomeu Dias (o
primeiro a ir além da Angra dos Ilhéus), Vasco da Gama ( o primeiro a dobrar o
Cabo as Tormentas, rebatizando-o para Cabo da Boa Esperança, em 1497), Pedro Álvares
Cabral (atingindo as costas do nosso Brasil, em 1.500) e, principalmente,
Fernão de Magalhães, o primeiro a sair de um porto europeu e ir para o ocidente,
cruzando o Cabo Horn na Terra do Fogo, subindo pela Oceania, até a costa da
Índia e voltando pelo Índico e Atlântico (já sob o comando de Juan Sebastián
Elcano, pois o Almirante morrera no longo périplo de três anos. Sinto suas
silhuetas gigantescas; pasmo diante de sua bravura e penso que, afinal, só me resta
dizer: navegar é preciso, viver não é preciso. Como meus colegas não perceberam
o quanto de coragem e desassombro havia naquela frase, a qual hoje sempre choro
ao repetir: aqui onde a terra acaba e o mar começa! Simples assim!
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