segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

O Aleijado

Realmente não entendo por que coisas acontecem em meu cotidiano com uma carga emocional fora dos padrões. Costumo, imediatamente, passar essas impressões para o papel antes que algum esquecimento de memória recente volte a me atingir. Vezes há em que fico pensando que meus poucos e eventuais leitores chegam a desconfiar se essas coisas realmente sucederam comigo. Esteja certo que, perto de encerrar a ópera, jamais usaria tamanha insensatez de mentir com emoção e descaramento; pisotear o sentimento de meus amigos, colegas e companheiros de jornada só para, muito eventualmente, ser admirado por dois ou três. Minha toca fica a cerca de cem metros do pequeno escritório onde trabalho, aqui nessa morna, morena e gostosa Belém do Pará. Faço o percurso diário com alguma rapidez e, geralmente, ando de cabeça abaixada, quase sempre contando pra mim mesmo as desventuras de meu ocaso, tentando multiplicar meus caraminguás e, principalmente, descobrindo a quem venderei o almoço pra comprar a janta. Isso é uma preocupação filosófica de monta. Ademais, é só na necessidade que o ser humano cresce. Parece masoquismo mas é só pintar uma dificuldade maior que a de ontem para aquela, com justificativa,veia poética, romântica e apaixonada surgir do nada. Pois estava eu com minhas elucubrações quando me chamou a atenção um som como passos fortes que vinha em minha direção, no sentido contrário da calçada. Levantei a cabeça e divisei, a uns dez metros, a figura de um aleijado (desculpem mas não cultuo a falsidade do politicamente correto e costumo chamar as coisas pelo nome que conheço, sem metaforizar ou sinonimizar). Ele era muito baixo sem ser anão; tinha as pernas pequenas e me pareceram disformes em baixio do arremedo de calça comprida. Deviam ter uns trinta centímetros. Ele se apoiava em duas muletas de metal, bem na frente do corpo, depois jogava as duas pernas e assim por diante, parecendo um canguru. Se deslocava com uma enorme rapidez para a dificuldade enfrentada, me lembrando um vira-lata que passa pelas ruas trotando rápido como se fosse a uma reunião de negócios. Claro que o homem não me lembrou o cachorro, mas sua rapidez de caminhar. Quando estava a uns quatro metros dei um bom dia como faço a todos os passantes mesmo desconhecidos. Sou fiel à lição de meu avô português de aldeia e que dizia ser indispensável dar-se um bom dia a todas as pessoas com as quais não se tenha dormido no mesmo quarto. Sempre mando esse cumprimento com algum recato pois aqui na minha terra tenho levado muitas omissões de resposta. Confesso que também temi que o homem pensasse que a comiseração me havia movido e eu estaria cumprindo com a minha boa ação para ganhar o dia como bom cristão. Que ledo engano! O homem me devolveu um bom dia com centenas de decibéis acima do meu, acrescido de um sorriso cativante e que expôs, a quem quisesse ver, duas fileiras muito brancas e bem cuidadas de dentes obviamente naturais. Evidente que o primeiro sentimento que me apossou foi a enorme vergonha de estar passeando de braços dados com minha autopiedade. Depois me assomou uma enorme esperança de que ainda vale à pena viver e acreditar nessa porra de humanidade. Aquele ser, marcado desde a nascença por uma dificuldade natural que triplica todas as demais adquiridas, passou como um vento morno de renovação de minhas esperanças ainda que desgastadas. Ao encerrar este texto ainda me martela docemente nos ouvidos aquele som dos seus passos: tum, tum. tum, tum.......cada vez mais sumindo no horizonte de minha consciência enquanto alimentava minha alma como um renovo vindo não sei de quê. Muito obrigado, meu amigo aleijado no físico e o mais saudável de todos, no espírito.

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