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5ª macrotendência: O problema da fome.
Conforme KURZ (1998:
3), há um padrão bem simples para poder avaliar a verdadeira qualidade de
uma época: o panorama da alimentação, onde uma cultura revela a sua capacidade
mais elementar de satisfazer suas necessidades. Em todas as sociedades
anteriores as pessoas teriam vivido de cascas emboloradas de pão, à beira da
fome constante; apenas a miraculosa economia de mercado teria solucionado o
problema da provisão de alimentos em abundância e de ótima qualidade. Esse
quadro faz pouco da realidade, pois exatamente o contrário é verdadeiro.
É certo que a civilização moderna elevou a produtividade
agropecuária para além de todos os limites imagináveis, não menos verdade é que
submeteu a uma alimentação miserável ou mesmo aos tormentos da fome um número
de pessoas sem precedentes, tanto em termos absolutos quanto em relativos. A
economia de mercado está mais uma vez – após a experiência liberal da era
moderna – disposta a agravar dramaticamente, no final do século 20, a contenção
de alimentos e abandonar à míngua, de forma constante ou temporária, quase 6
bilhões de pessoas.
A melhora da provisão mundial de alimentos, nos anos 60 e 70,
foi passageira; desde os anos 80 a fome e a desnutrição se expandem. E não
somente o continente africano fornece imagens aterradoras de crianças em pele e
osso e de lactentes que sugam em vão os seios descarnados de suas mães. O mundo
do mercado acostumou-se com essas cenas, que agora já deixaram de nos chocar.
Mas o fantasma da fome reaparece onde parecia estar banido para sempre.
Mineiros e suas famílias da região da Ucrânia ou da Sibéria,
aposentados de Moscou, crianças de rua em todo o leste europeu passam tanta
fome quanto boa parte da população da América Latina e sul da Ásia. Segundo um
relatório do UNICEF, a cada ano morrem mais de 7 milhões de crianças, vítimas
da subnutrição. E o maior modelo de
sucesso neoliberal consiste na universalização da cozinha dos pobres.
A fome regressou até mesmo nos centros industriais do
Ocidente. Ainda que pelo menos um membro da família tenha emprego, 30 milhões
de norte-americanos encontram-se hoje, em decorrência dos literais salários de fome, numa situação precária de alimentação; dentre
eles, 26 milhões dependem mensalmente de refeições públicas ou doações privadas,
mais de 4 milhões de adultos passam fome de modo esporádico ou diário, 11
milhões de crianças estão subnutridas e em quase 1 milhão de lares não há,
muitas vezes, o que comer durante dias, dados estes fornecidos pelo Ministério
da Agricultura dos EUA ou de organizações beneficentes como a Second Harvest.
O pretenso capitalismo social
alemão também permite, segundo dados confiáveis da Associação Alemã para a
Defesa da Criança, que as famílias pobres vejam aumentar cada vez mais o índice
de mortalidade ou doenças em seus filhos, graças à alimentação deficiente.
Alguns professores de bairros com alta incidência de desemprego relatam que, ao
final do mês, não é raro que crianças da pré-escola desmaiem por falta de
comida, já que os pais não lhes podem pagar o café da manhã ou o almoço. Em
muitas escolas, tornou-se comum estudantes famintos mendigarem pão a seus
colegas mais remediados.
Todas essas atrocidades não remontam ao fato de uma taxa de
natalidade muito elevada ter conduzido a um excesso
de população que, com as atuais possibilidades técnicas, é incapaz de ser
alimentada e deve de algum modo ser neutralizada, conforme o prognóstico de
Malthus, já mencionado em outra parte deste ensaio. Ao contrário, do século 18
até hoje as forças produtivas cresceram com velocidade infinitamente maior do
que a população mundial. Caso se tratasse da potência produtiva, o dobro da população atual poderia ser
facilmente alimentada com folga e abundância. O limite social da produção e da
distribuição de alimentos não é determinado por rendimentos agrícolas
insuficientes em relação ao contingente populacional, mas pela forma econômica do moderno sistema produtor de mercadorias.
A lógica da rentabilidade empresarial exige uma restrição
irracional de recursos, que vem à luz de forma mais drástica no plano elementar
da alimentação. Em princípio, as pessoas só têm acesso aos alimento com a
ressalva de que a sua força de trabalho seja usada de forma rentável. Se não
preencher esse requisito, no caso da produtividade muito alta tornar supérflua sua força de trabalho,
elas são mantidas a rações de fome, apesar
de a capacidade de produção de alimentos ter crescido.
Decisiva não é a necessidade
vital, mas o maior preço a ser alcançado. O caráter absurdo desse
requisito fica bem claro na produção agrária, pois nela o resultado não depende
só de quanto capital foi investido. Uma super colheita, antes recebida com
júbilo, para o cálculo empresarial do agribusiness
ela representa uma fatalidade, pois, com o excedente,
os preços são reduzidos, fazendo parte do cotidiano dos negócios mercantis, em
caso de colheitas recordes, queimar em massa produtos agrícolas ou
desnaturá-los por meio de processos industriais – óleo de soja, rações para
animais, etc. – enquanto bem ao lado as pessoas morrem de fome.
A mesma racionalidade empresarial acarreta não apenas a fome
em massa, mas também degrada a qualidade dos alimentos em níveis incrivelmente
baixos. Nem a cultura da embalagem é
capaz de nos iludir, com todo o seu colorido e sua higiene superficial. A
lógica da redução de custos faz com que a indústria alimentícia retire
ingredientes básicos de seus produtos externamente tão vistosos, a fim de
torná-los rentáveis. Fast food e
comidas instantâneas simulam uma qualidade que não possuem. Um pacote de sopa de galinha da empresa alemã Knorr,
com rendimento de quatro pratos, contém somente 2 gramas de galinha desidratada, em bolotinhas.
Dessa maneira, produz-se uma sensação permanente de fome, que
enseja o consumo de mais alimentos com baixo teor de proteínas. O resultado são
pessoas doentes, inchadas, que não vivem melhor do que os esfomeados, além do
incentivo à indústria dos complementos alimentares na forma de vitaminas,
minerais, etc., que deveriam estar contidos numa alimentação balanceada.
As grandes empresas de produtos alimentícios fazem de tudo
para maximizar os lucros e iludir os consumidores, criando produtos e gerando resultados que podem ser facilmente elencados:
a - camarões rosáceos congelados, não passam de carne
de peixe de segunda, tingida com colorante e comprimida em forma de camarões;
b - na Itália,
é comum encontrar-se material cancerígeno no macarrão, proveniente das
embalagens;
c - nos
transportes de alimentos com exigência de temperatura de 7ºC, foi constatada a
temperatura de 25ºC e a não lavagem dos compartimentos depois de desembarcados
os produtos;
d - a metade
dos frangos comprados na União Européia está infectada por bactérias,
quintuplicando os casos de salmonelose na Alemanha, entre 1985 e 1992;
e - a doença da
vaca louca surgiu com a pulverização
da forragem do gado com restos de ovelhas contaminadas;
f - diminui a variedade de sabores pois a distribuição
continental e transcontinental permite um espectro diminuto de produtos básicos
segundo as normas de acondicionamento,
deixando de lado, como supérfluos,
milhares de frutas e legumes e centenas de espécies de animais comestíveis;
g - a cerveja
pode conter cascos de animais pulverizados e o chocolate, sangue desidratado;
h - com os
sabores sintéticos os produtos têm custo muito menor do que usando frutas verdadeiras,
biomassas desnaturadas e insípidas são injetadas
com substâncias aromáticas, daí resultando uma estrutura molecular
correspondente a sabor de galinha
quase idêntica ao de morango;
i - no Japão,
cientistas criaram um hambúrguer –
toalete que contém como ingredientes papel higiênico e excrementos, submetidos a uma temperatura extremamente elevada e
acrescidos de proteínas de soja, obtendo como produto um granulado que há de
servir como substituto para a carne.
Tudo isso é economia de
mercado. Mas tudo é relativo, retrucaria a ideologia pós-moderna. E
por que o homem capitalista não seria privado também de seu paladar? Em teste
numa escola alemã, as crianças foram incapazes de identificar o sabor “amargo”. Os administradores modernos,
maiores incentivadores da criação do hábito de comer andando (food on the run) e comer no carro (food on the ride) ingerem substâncias
que um camponês da Idade Média não daria sequer aos porcos.
A macrotendência óbvia que se desenha para as próximas
décadas é a de que os pobres continuarão a passar fome por não terem dinheiro e
os ricos prosseguirão pagando pelo direito de passar fome.
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