sábado, 9 de fevereiro de 2013

Comer cavalo ou comer merda?


-          5ª macrotendência: O problema da fome.

Conforme KURZ (1998: 3), há um padrão bem simples para poder avaliar a verdadeira qualidade de uma época: o panorama da alimentação, onde uma cultura revela a sua capacidade mais elementar de satisfazer suas necessidades. Em todas as sociedades anteriores as pessoas teriam vivido de cascas emboloradas de pão, à beira da fome constante; apenas a miraculosa economia de mercado teria solucionado o problema da provisão de alimentos em abundância e de ótima qualidade. Esse quadro faz pouco da realidade, pois exatamente o contrário é verdadeiro.
É certo que a civilização moderna elevou a produtividade agropecuária para além de todos os limites imagináveis, não menos verdade é que submeteu a uma alimentação miserável ou mesmo aos tormentos da fome um número de pessoas sem precedentes, tanto em termos absolutos quanto em relativos. A economia de mercado está mais uma vez – após a experiência liberal da era moderna – disposta a agravar dramaticamente, no final do século 20, a contenção de alimentos e abandonar à míngua, de forma constante ou temporária, quase 6 bilhões de pessoas.
A melhora da provisão mundial de alimentos, nos anos 60 e 70, foi passageira; desde os anos 80 a fome e a desnutrição se expandem. E não somente o continente africano fornece imagens aterradoras de crianças em pele e osso e de lactentes que sugam em vão os seios descarnados de suas mães. O mundo do mercado acostumou-se com essas cenas, que agora já deixaram de nos chocar. Mas o fantasma da fome reaparece onde parecia estar banido para sempre.
Mineiros e suas famílias da região da Ucrânia ou da Sibéria, aposentados de Moscou, crianças de rua em todo o leste europeu passam tanta fome quanto boa parte da população da América Latina e sul da Ásia. Segundo um relatório do UNICEF, a cada ano morrem mais de 7 milhões de crianças, vítimas da subnutrição. E o maior modelo de sucesso neoliberal consiste na universalização da cozinha dos pobres.
A fome regressou até mesmo nos centros industriais do Ocidente. Ainda que pelo menos um membro da família tenha emprego, 30 milhões de norte-americanos encontram-se hoje, em decorrência dos literais salários de fome, numa situação precária de alimentação; dentre eles, 26 milhões dependem mensalmente de refeições públicas ou doações privadas, mais de 4 milhões de adultos passam fome de modo esporádico ou diário, 11 milhões de crianças estão subnutridas e em quase 1 milhão de lares não há, muitas vezes, o que comer durante dias, dados estes fornecidos pelo Ministério da Agricultura dos EUA ou de organizações beneficentes como a Second Harvest.
O pretenso capitalismo social alemão também permite, segundo dados confiáveis da Associação Alemã para a Defesa da Criança, que as famílias pobres vejam aumentar cada vez mais o índice de mortalidade ou doenças em seus filhos, graças à alimentação deficiente. Alguns professores de bairros com alta incidência de desemprego relatam que, ao final do mês, não é raro que crianças da pré-escola desmaiem por falta de comida, já que os pais não lhes podem pagar o café da manhã ou o almoço. Em muitas escolas, tornou-se comum estudantes famintos mendigarem pão a seus colegas mais remediados.
Todas essas atrocidades não remontam ao fato de uma taxa de natalidade muito elevada ter conduzido a um excesso de população que, com as atuais possibilidades técnicas, é incapaz de ser alimentada e deve de algum modo ser neutralizada, conforme o prognóstico de Malthus, já mencionado em outra parte deste ensaio. Ao contrário, do século 18 até hoje as forças produtivas cresceram com velocidade infinitamente maior do que a população mundial. Caso se tratasse da potência produtiva, o dobro da população atual poderia ser facilmente alimentada com folga e abundância. O limite social da produção e da distribuição de alimentos não é determinado por rendimentos agrícolas insuficientes em relação ao contingente populacional, mas pela forma econômica do moderno sistema produtor de mercadorias.
A lógica da rentabilidade empresarial exige uma restrição irracional de recursos, que vem à luz de forma mais drástica no plano elementar da alimentação. Em princípio, as pessoas só têm acesso aos alimento com a ressalva de que a sua força de trabalho seja usada de forma rentável. Se não preencher esse requisito, no caso da produtividade muito alta tornar supérflua sua força de trabalho, elas são mantidas a rações de fome, apesar de a capacidade de produção de alimentos ter crescido.
Decisiva não é a necessidade vital, mas o maior preço a ser alcançado. O caráter absurdo desse requisito fica bem claro na produção agrária, pois nela o resultado não depende só de quanto capital foi investido. Uma super colheita, antes recebida com júbilo, para o cálculo empresarial do agribusiness ela representa uma fatalidade, pois, com o excedente, os preços são reduzidos, fazendo parte do cotidiano dos negócios mercantis, em caso de colheitas recordes, queimar em massa produtos agrícolas ou desnaturá-los por meio de processos industriais – óleo de soja, rações para animais, etc. – enquanto bem ao lado as pessoas morrem de fome.
A mesma racionalidade empresarial acarreta não apenas a fome em massa, mas também degrada a qualidade dos alimentos em níveis incrivelmente baixos. Nem a cultura da embalagem é capaz de nos iludir, com todo o seu colorido e sua higiene superficial. A lógica da redução de custos faz com que a indústria alimentícia retire ingredientes básicos de seus produtos externamente tão vistosos, a fim de torná-los rentáveis. Fast food e comidas instantâneas simulam uma qualidade que não possuem. Um pacote de sopa de galinha da empresa alemã Knorr, com rendimento de quatro pratos, contém somente 2 gramas de galinha desidratada, em bolotinhas.
Dessa maneira, produz-se uma sensação permanente de fome, que enseja o consumo de mais alimentos com baixo teor de proteínas. O resultado são pessoas doentes, inchadas, que não vivem melhor do que os esfomeados, além do incentivo à indústria dos complementos alimentares na forma de vitaminas, minerais, etc., que deveriam estar contidos numa alimentação balanceada.
As grandes empresas de produtos alimentícios fazem de tudo para maximizar os lucros e iludir os consumidores, criando produtos e gerando resultados que podem ser facilmente elencados:

a -  camarões rosáceos congelados, não passam de carne de peixe de segunda, tingida com colorante e comprimida em forma de camarões;
b -  na Itália, é comum encontrar-se material cancerígeno no macarrão, proveniente das embalagens;
c -   nos transportes de alimentos com exigência de temperatura de 7ºC, foi constatada a temperatura de 25ºC e a não lavagem dos compartimentos depois de desembarcados os produtos;
d -  a metade dos frangos comprados na União Européia está infectada por bactérias, quintuplicando os casos de salmonelose na Alemanha, entre 1985 e 1992;
e -  a doença da vaca louca surgiu com a pulverização da forragem do gado com restos de ovelhas contaminadas;
f -    diminui a variedade de sabores pois a distribuição continental e transcontinental permite um espectro diminuto de produtos básicos segundo as normas de acondicionamento, deixando de lado, como supérfluos, milhares de frutas e legumes e centenas de espécies de animais comestíveis;
g -  a cerveja pode conter cascos de animais pulverizados e o chocolate, sangue desidratado;
h -  com os sabores sintéticos os produtos têm custo muito menor do que usando frutas verdadeiras, biomassas desnaturadas e insípidas são injetadas com substâncias aromáticas, daí resultando uma estrutura molecular correspondente a sabor de galinha quase idêntica ao de morango;
i -    no Japão, cientistas criaram um hambúrguer – toalete que contém como ingredientes papel higiênico e excrementos, submetidos a uma temperatura extremamente elevada e acrescidos de proteínas de soja, obtendo como produto um granulado que há de servir como substituto para a carne.
Tudo isso é economia de mercado. Mas tudo é relativo, retrucaria a ideologia pós-moderna. E por que o homem capitalista não seria privado também de seu paladar? Em teste numa escola alemã, as crianças foram incapazes de identificar o sabor  “amargo”. Os administradores modernos, maiores incentivadores da criação do hábito de comer andando (food on the run) e comer no carro (food on the ride) ingerem substâncias que um camponês da Idade Média não daria sequer aos porcos.
A macrotendência óbvia que se desenha para as próximas décadas é a de que os pobres continuarão a passar fome por não terem dinheiro e os ricos prosseguirão pagando pelo direito de passar fome.


Nenhum comentário:

Postar um comentário