Ah os ídolos nacionais. O Brasil
sempre foi um país formador de ídolos no mercado interno. Isto se explica, ao
menos parcialmente, pela anemia histórica na formação de vultos de importância
universal. Quatro argentinos, três
mexicanos, mais Chile, Peru, Colômbia e até Costa Rica já possuem ou possuíram
personalidades ganhadores do Prêmio Nobel enquanto nós continuamos penando atrás
da láurea, da qual passamos perto não fosse o veto dos governos militares à escolha,
praticamente certa, de D. Helder Câmara para o Nobel da Paz. Cacete, Menachem
Begin, guerrilheiro sanguinário o ganhou e da Paz. Saramago, gênio puro, mas
português, levou-o no bico. Mas nós continuamos na seca e isso nos ofende. Até
para escolher um Santo brasileiro, sendo nosso país a segunda maior população
católica do mundo, perdendo apenas para as Filipinas, pastamos séculos:
Anchieta, mesmo português de nascimento, não ganhou a indicação por haver
puxado para baixo os ombros de um supliciado que padecia na forca sem conseguir
morrer. Até o Peru, nos anos 60, conseguiu emplacar um tal de São João DE
PORRES que a gozação brasileira elevou à categoria de padroeiro da ressaca.
Frei Galvão veio aos 49 do segundo tempo. Nelson Rodrigues sempre dizia de
nosso complexo de cachorro vira-lata, fato que nos fez elevar Santos-Dumont à categoria
de herói nacional quando ele, desde muito jovem, estudou e morou na França. Nos
esgoelamos por Maria Esther Bueno, uma quase inglesa que só fez nascer em São
Paulo. Na música tinha Gardel e Libertad Lamarque, realmente gênios dos Hermanos.
Tivemos que criar um Gardel brasileiro, com cabelo glostorado e dividido ao
meio e que também veio a morrer tragicamente em um desastre bem menos glamoroso
que o Uruguaio criado entre Paris e Buenos Aires; enquanto este se espatifou em um avião na pista
de Medellin, nosso Chico Viola virou pasta na traseira de um caminhão
verdureiro na Rio-São Paulo. Nossa (nascida em Portugal) Carmem Miranda foi a
primeira que arrebentou a boca do balão mas em Hollywood. Só veio ser enterrada
aqui. Eder Jofre, vamos combinar, foi o primeiro brasileiro “quase” puro a nos
dar glórias internacionais. O quase se deve ao fato de que era filho do
argentino José Aristides Jofre, o Kid Jofre, também seu técnico e sua mãe Angelina era da família de
boxeadores oriundi como Ralph Zumbano. De propósito não estou mencionando os ídolos
do futebol, tendo o maior de todos, Pelé, à frente, justamente porque esse era
o único ramo no qual na verdade nos destacamos sempre. O que realmente me
motivou a escrever este artigo foi uma comparação que me caiu no colo
assistindo um programa de televisão. De ressaltar que ela não foi mote do
programa, eu é que comecei a engendrar, na mente, esses fatos que marcaram a
vida ativa no esporte, desses dois ídolos nacionais incomparáveis, levando-me a
cotejá-los não sei bem por qual razão: Ayrton Senna e Guga! A princípio, pode
parecer ao menos avisado que essa comparação não passa de uma grande idiotice
de minha parte, considerando que as glórias de Ayrton parecem superar em muito
as de Kuerten. Mas isso é uma conclusão, pelo menos, precipitada. Ayrton
notabilizou-se em um esporte no qual o Brasil já se destacava. Abstraindo os
feitos de grandes corredores do passado como Chico Landi, Luizinho Pereira
Bueno, Bird Clemente, Wilson Fittipaldi, Wilsinho Fittipaldi, Christian Heinz
(primo do clã Fittipaldi e que morreu quando liderava Le Mans), Piero e Lula
Gancia, Mario Filizolla, José Carlos Pacce (o Moco), Alex Dias Ribeiro e Jean
Louis (filho da jornalista Yvonne Jean d’O Correio Braziliense) até chegarmos
ao quase adolescente Emerson Fittipaldi, que aos 19/20 anos já dava show nas 12
Horas de Brasília (depois Mil Quilômetros de Brasília), buzinando uma pequena
Alfa Romeo ou um Renault “Rabo-Quente” de quatro cv, quando ultrapassava seus
atônitos concorrentes. Emerson, na verdade, abriu o caminho mais difícil de
ganhar lá fora, sentado num F1 da Lotus, cedido por Colin Chapman para correr
no lugar do campeão “post-mortem” , o austríaco Jochen Rindt, que morrera em Monza
um mês antes. Era quatro de outubro de 1970, domingo chuvoso em Brasília,
quando, a bordo do que ele mesmo chamou, de um “enorme caixão negro com frisos
dourados, atopetado de gasolina”, Emerson resgatou o orgulho nacional e venceu
em um esporte então inusitado, algo muito distante pra ser verdadeiro. O que
estou tentando dizer é que, com o caminho aberto com muito sangue, suor e
lágrimas por Fittipaldi e trilhado com muita competência depois por Piquet,
Ayrton, na verdade, consumou o que dele se esperava: nos entregar o segundo
tricampeonato da categoria. Naquela época, ganhar os GP’s era tão corriqueiro,
que já sentávamos à frente da TV com toda a parafernália pronta, não para
assistir uma corrida, mas para nos emocionar com Ayrton. Disso nasceu sua
dimensão etérea de maior ídolo nacional, quase um super-homem e que pensava,
exatamente, como o brasileiro médio, para quem segundo e último lugar era a
mesma coisa, ainda que Emerson e Piquet lhe tivessem legado o exemplo que o
fato de pontuar também trazia campeonatos. Mas Ayrton disputava, talvez consigo
mesmo ou com adversários quixotescamente imaginários, para ganhar sempre, ousar
sempre, arriscar tudo em milésimos de segundo, gana que lhe trouxe a morte
prematura e desnudou a humanidade do ídolo; sua parte fraca e irracional: morreu
porque não admitia nada menos que a glória suprema! Já Guga, indo pela mesma
trilha de ética e comportamento pessoal irrepreensível, brilhou em um esporte
também de elite, mas no qual o Brasil só tivera dois escassos ídolos; Edson
Mandarino, educado na Espanha e que só falava espanhol e Tomas Koch, que sempre
ficou na periferia do sucesso idílico. Guga veio do nada e, como num piscar de
olhos, nos jogou dentro de uma quadra de tênis, esquecida desde os anos 60,
para quem tem idade para tal, com os feitos de Maria Esther. O protótipo do bom
garoto, órfão de pai, vida difícil, ele consegue arrebatar nem um, nem dois mas
TRÊS Grand Slam; se transforma no rei de Paris. Passa por cima de todos os
adversários, atingindo a glória maior de ganhar o Masters de Lisboa de 2000,
onde dissecou tudo o que havia de invencível no tênis mundial, permanecendo impensáveis
43 semanas no topo do ranking (11 meses). De repente, mal acostumada pelos
riscos mal calculados sempre assumidos por Ayrton, a torcida brasileira assiste
o Guga se dobrar a uma dor física, aquela que nada significa para quem não a
está sentido. Confesso que, junto com a massa, cheguei a pensar algo do tipo:
mas esse cara???? Logo agora, pô! Mas, a verdade é que nesse momento e
parafraseando a carta testamento de Vargas, Guga deixa as quadras e passa para
a História, assumindo a dimensão humana dos heróis do panteão brasileiro. Sente
o perigo da crescente dor, não calcula mal a velocidade da claudicante Williams
perante a Bennetton mais veloz de Schumacher, não rasga a Rascasse em perigo e
muito menos enfrenta a Tamburello numa velocidade excessiva. Sai de cena, para
mim, como o mais humano de todos os maiores ídolos nacionais. Simples, garotão,
rato de praia, queimadão de sol, cabeleira ondulante ao vento, gemido parecendo
importado do prazer na cama e imortalizado como marca sempiterna, nunca se
escondendo da crítica nem querendo passar uma imagem de semideus mas, acima de
tudo, VIVO, como gostaríamos que Ayrton também estivesse. Simples assim!
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