Ah o Marxismo! Há cerca de 14 anos tive o privilégio de assistir a
uma palestra de meu mais forte guru em questões de ética: o pensador, sociólogo
e filósofo Edgar Morin, judeu francês com noventa e um anos de idade. O que me
chamou mais a atenção foi uma pergunta feita por um empafioso professor de
Sociologia, doutorando da mesma UnB, indagando (em francês melodioso) se ao
defender determinada opinião, Morin tinha sido sincero ou cínico. Estupefato, o
velho mestre respondeu, em primeiro lugar, que estava fazendo a palestra em
espanhol e não entendia por que o ouvinte fizera a pergunta em francês e
disparou-lhe a primeira indagação: seria isso para demonstrar uma desnecessária
erudição perante a plateia? E mandou a segunda: Em qual de seus livros o
ouvinte tinha lido aquela opinião? O já meio atarantado professor informou-lhe que
lera o assunto num livro em que um terceiro analista afirmava que Morin assim
pensava. O atônito filósofo então deixou bem claro: Eu nunca falei isso! E
concluiu, mesmo não sendo cristão mas parafraseando Jesus: Acautelai-vos contra
os que tomam seu nome e suas ideias em vão! Esse case vem a calhar na vida de Karl Marx. Ninguém, ao longo da
História, foi mais criticado, analisado e esmiuçado SEM SER LIDO!?!? Muito
poucos que falam ou falaram de Marx terão lido os quatro volumes de “O Capital”
(o quarto foi póstumo e escrito por Engels) ou mesmo o relativamente pequeno
“Manifesto do Partido Comunista”. Quanto mais obras menos famosas, que li (umas
com prazer outras com dificuldade), como “Crítica da Filosofia do Direito de
Hegel”, “Sobre a questão judaica”, “A Sagrada Família” e “Sobre o suicídio”. Mas já vi muitos pousarem de especialistas nas
ideias do filósofo alemão. Tive o cuidado de ler a obra de Marx, com espírito
aberto mas crítico, até perceber que esse homem, na verdade, é um dos
pensadores mais geniais, holísticos e injustiçados da História. Muito
colaborou, para isto, a apropriação indébita das ideias marxistas por ditaduras
sanguinárias como as de Stalin na antiga URSS, Fidel em Cuba, Mao na China e
outros países sob suas influências no sudeste asiático, leste europeu e parte
da África recém libertada, dede o final dos anos cinquenta. Para isso
contribuiu, substancialmente, o fato das ideias marxistas, escritas para
vicejar nos riquíssimos solos alemão e inglês, países credores da vanguarda em
todas as criações do pensamento moderno (na arte, na ciência, na tecnologia, na
economia, na sociologia etc.) e que convulsionaram o mundo a partir do século
XVIII, começou por vingar em solo muito mais arenoso. Certamente por azar ou
infelicidade do destino, Marx terminou por incentivar uma grande revolução em
um gigantesco (mas pouco habitado) país com metade de seu território congelado
grande parte do ano e ainda mergulhado no Feudalismo. Na verdade as Rússias dos
Tzares, ainda nem haviam iniciado a colheita do Iluminismo e sequer passaram
pela aventura capitalista pós Revolução Industrial. Ora, uma nação com 90% de
sua população formada por analfabetos, mergulhada num absolutismo anacrônico
(onde nem a Revolução Francesa sequer ecoara), quase sem comunicação com a
parte mais culta da Europa, não era propriamente o local idealizado pelo Mestre
para dar viço a ideias tão avançadas quanto, por exemplo, a ditadura do
proletariado. Lenine certamente percebeu a impossibilidade material de
transferência do poder para uma massa despreparada, nos campos e cidades,
optando por criar uma plutocracia com a cúpula do Partido Único fato que,
infelizmente, manteve-se intocada até a derrocada da URSS em 1991 e a queda dos
seus regimes satélites em cascata. Mao tinha feito o mesmo na China e a ideia
central de transferência do poder para uma estrutura social, econômica e
política diferente (para mim o grande ideal comunista e cerne da Revolução),
ficou no terreno da utopia. Essa era a seta que Marx sempre buscou cravar no
coração do capitalismo desvairado, na verdade o mais desumano sistema de
governo e vida jamais criado e que persiste e parece ubíquo por mais mil anos,
notadamente pelo fim de sua dicotomia prática. Marx não era um sonhador e, do
meio fértil de suas ideias, ainda persiste a possibilidade de que os esfomeados
e excluídos da Terra (componentes de 2/3 dos habitantes do planeta), venham a
tomar o poder através de uma revolução armada e sangrenta (do estilo haitiano
ou norte-americano mais puro), movidos no meio dos grandes aglomerados urbanos,
ainda que lhes falte um substrato político. Hirto de ira quando o acusavam de
embalar um sonho, até confundindo-o com os socialistas utópicos como Saint-Simon,
Orwell, Blanc, Fourier, Proudhom e outros menos votados, vociferava Marx, com a
indignação dos justos, que a ele não cabia entender ou explicar o mundo, mas
MODIFICÁ-LO! E ninguém jamais deu tanta munição aos trabalhadores em estado de
escravidão disfarçada em que ainda vivem, do que o filósofo alemão. A questão
da sociedade não estratificada realmente só poderia ocorrer num Estado
Comunista Internacional com Liberdade Organizada, como expressamente previu. A
coletivização dos meios de produção, na verdade, constituir-se-ia no maior
evento no caminho de uma sociedade solidária, humana e igualitária. O fim da
mais-valia (penalidade que atinge os trabalhadores quando excedem a produção de
bens para seu sustento e passam a fazê-lo para o mercado criando, por esforço
pessoal, um valor econômico excedente e expropriado pelo capitalista, chamado
lucro) permitiria a produção de bens (para o consumo necessário da humanidade)
e não mercadorias (excedentes consumidos por impulso ou para a geração do já
mencionado lucro, além de status). A
própria ditadura do proletariado, exercida pelo Partido Único, comunista, pelo
menos afastaria do centro do poder os que utilizam riquezas pessoais para
ascender ao mando político. Até a previsão de que o capitalismo terminaria por
ser dizimado por suas próprias mazelas, numa autofagia inafastável e como
corolário da desenfreada concentração de riquezas, fato que faz o mundo, cada
vez mais, “pertencer” a cada vez menos, parece inexorável nos dias de hoje.
Aonde a coisa pega mais, para mim, é no determinismo histórico. Explico! Ou
melhor, tento explicar. A dialética (originalmente desenvolvida por Zenão de
Eléia e depois aperfeiçoada pelo panteísta Hegel) vem a ser o caminho que tomam
as ideias até se corporificarem em fatos, ou seja, do pensamento (sua gênese)
até a ação (sua manifestação real). Penso: vou mover o braço (tese); reflito:
Para quê? (antítese). Resultado: Para pegar meu lápis! (síntese da ação
engendrada). Esse magistral arcabouço filosófico, adaptado à função pragmática
da História, resultaria na eclosão do já mencionado Estado Comunista, como
desiderato inevitável, fruto da evolução e do que Marx e Engels chamaram de
construção do SOCIALISMO CIENTÍFICO. Aí me parece falhar o Marxismo. Talvez não
em substrato mas certamente em forma. Ao assumir a infalibilidade dessa crença, o Marxismo
abandona o método científico, que admite a refutação, para afundar na
ideologia, posição que não aceita a contradita, como verdade estática. Penso
que se os pesquisadores do Marxismo, ou o próprio Marx, tivessem previsto uma
brecha para acatar a dinâmica da crítica e a possibilidade de evolução da
ideia, certamente já não estaríamos vivendo sob a égide de um sistema tão
injusto como o capitalismo (assim mesmo, com C minúsculo). Nos fins de tarde e
ocaso da vida, quase sempre sou tentado a pensar: quem sabe o milênio de paz
com Cristo, o terceiro milênio místico da era de Aquário e tantas filosofias
religiosas e morais assemelhadas, não sejam, no fundo, um Comunismo de
sentimentos, ética, riquezas e pobrezas? Tirando os pensadores cínicos,
absurdos, melosos e sonhadores, Marx é o único que muito de aproxima de uma
realidade plausível, uma esperança para um amanhã melhor. Por final, parece
certo que Marx sempre é julgado por excertos, pensamentos soltos do tipo “A
religião é o ópio do povo” ou “Não é a consciência do
homem que lhe determina o ser, mas, ao contrário, o seu ser social que lhe
determina a consciência” ou ainda ”O caminho do inferno está pavimentado de
boas intenções”. Me confesso um Comunista puro, pelo simples fato de Marx ser o
único pensador que mais se aproxima dos Evangelhos de Jesus Cristo. Ninguém, na
verdade, idealizou um mundo tão justo quanto esses dois. Simples assim!
Sensacional texto, papai!
ResponderExcluirNunca li nada de Marx, e por isso mesmo sempre achei estranho que algumas pessoas fossem rotuladas de "marxistas" por aí.
Fosse essa classificação correta, provavelmente (e de acordo com o que acabo de aprender) o mundo seria um local bem melhor.
Então, estamos povoados de falsos marxistas; são uns grandessíssimos filhos da puta, isso sim!