quinta-feira, 15 de agosto de 2013
Minha tia era minha mãe!
Seu nome era pomposo como título de ópera, Carmem Cativo Rosa, mas o apelido era de uma franciscana simplicidade espanhola: Carmita! Era minha Tia Carmita, com quem convivi, ora mais tempo juntos ora mais separados, 50 anos de minha vida (ela morreu em 1997). Eu a amo tanto que, ao perceber que minha mãe vivia doente, tinha eu cinco ou seis anos pedi a ela (minha mãe), bem baixinho e temendo sua reação sempre imprevisível: mãe, se você morrer eu não quero ficar morando com o Papai. Me deixa morar com Tia Carmita? Eu a olhava por baixo, como quem admira algo muito especial na vida. Era meu exemplo em várias coisas, até e principalmente, no jeito tão permissivo com o qual me tratava, deixando eu fazer coisas proibidas por minha mãe, como tomar banho de chuva na rua, sair nu envolto em uma fantasia de serpentinas que ela fez para mim no carnaval de 1953, deixar eu tomar café preto, dormir tarde e brincar nos quintais com os pés descalços. Minha maior felicidade na vida era passar temporadas, finais de semana, parte de férias, até uma simples visita à casa dela. Meus três primos e meu tio, seu marido, compunham todo o ideal de prazer que eu conhecia na vida. Ela trabalhava duro em cima de uma máquina mecânica (até instalar um pedal elétrico tempos depois) muitas vezes até passar de meia-noite. Ainda assim tinha tempo para me levar ao Clube do Guri na PRC-5 (Rádio Clube), no Jurunas, sábado à tarde; passear de ônibus que imitava o Zepellin; comer unha de camarão na Festa de Nazaré; conhecer o Pinheiro e as Praias de Mosqueiro, Soure e Salvaterra, na Ilha do Marajó. A simples visão de sua silhueta me desanuviava a alma e significava, antes de mais nada, a suspensão de surras, tapas, palmatórias na mão e outras torturas diárias tão ao gosto de minha mãe, sua irmã caçula. Juntava meus primos e meu irmão e lá ia nos levar pra ver, no sábado gordo e em plena Praça da República (naqueles tempos, Largo da Pólvora) assistir as Batalhas de Confete com os melhores blocos carnavalescos de Belém (Não Posso me Amofiná, Piratas da Cremação, Quem São Eles e o quase imbatível, Boêmios da Campina). Tudo que fiz de lúdico até minha adolescência foi sob os auspícios de minha amada Tia Carmita. Por que então a terei lembrado assim do nada? Esses são os meandres da alma. A cena me veio de repente. Era um sábado à noite. Ela preparava um vestido para ser entregue, e faturado na mesma hora ou, no máximo, no domingo de manhã. Todos estavam brincando na rua e eu fiquei, grudado no meio dos retalhos e do barulho gostoso de sua máquina. Ela já tinha os ombros curvados e eles balançavam com o ritmo dos pés naquele pedal que subia e descia: troc-troc-troc. Aí ela abria o compartimento das agulhas, colocava mais linhas dentro de um pequeno carretel de aço, trocava as agulhas duplas, uma mais alta que a outra e eu grudado na mesa. Tia, como é a marca da máquina? E ela: Parece que pronuncia FAF! Mas como se tem um P e dois FF, PFAFF? É porque ela é belga, estrangeira! Não se pronuncia o P! E o barulho não parava. Minhas intervenções pareciam não atrapalhá-la. Tia como chama esse tecido branco que brilha? É cetim? Não, meu filho, é um tecido novo, americano, que é feito com plástico e chama Tafetá? Queres ver eu fazer uma mágica com ele? Eu, absolutamente siderado: quero Tia, quero! Ela pegava um retalho, acendia um fósforo o tecido incendiava e soltava gotas queimando e fazendo estrelinhas como foguinhos de São João. Eu não conseguia abrir a boca e balbuciava, muito gago, uma pergunta amedrontada que ela, vendo meu engasgo, mais me metia medo ameaçando jogar o retalho incendiando em mim eu corria alguns passos e voltava ti-ti-ti-ti-a, pa-pa-para! Ela, completamente vermelha e sem fôlego de tanto rir, se livrava da tochinha e me abraçava: Titia tá brincando, meu filho! Por onde andarás, minha mãe? Branquinha e loura natural, seu apelido de infância era barata branca! Tia Carmita, já não tenho ninguém pra rir da minha gagueira. Aliás, nem a gagueira tenho mais. E também não tenho você!
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Que lindo!!! Como eh bom poder lembrar de pessoas queridas assim. Como eh bom termos tido pessoas assim em nossas vidas para criar memomrias boas. Minha mae como a sua, duroona. Mas a minha avo Rosa e minha tia de Recife... Tudo de melhor. Bom termos memorias de tao bons sentimentos...
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